Quando se estuda o principio da ética em Propriedade Intelectual, temos duas situações clássicas a serem apreciadas: a primeira (e mais conhecida) é a reprodução ou imitação de marcas e/ou envolvimento de patentes entre empresas concorrentes (isto é, atos de concorrência desleal entre empresas que têm na propriedade intelectual seus principais ativos) e a segunda é aquela que envolve os escritórios concorrentes que prestam serviços de assistência aos detentores de direitos de propriedade intelectual, que por vezes podem alegar alguma violação ética do outro no tratamento com os clientes.
Neste diapasão, o segundo aspecto tem uma importância concorrencial ainda mais ampla (de consideração ética na sua origem), pois envolve desde o efetivo princípio do conhecimento e a consecução dos atos em relação ao exercício da advocacia ou da profissão de agente da propriedade industrial, abarcando até aqueles que, não possuindo tais qualificações (seja por inexistência de vedações legais ou existência de decisões judiciais que hoje permitem atuação livre dos autodenominados “agentes da propriedade industrial”), atuam como mandatários perante o órgão responsável INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial (em uma tradução livre, Patent and Trademark Office).
Voltando à situação clássica de concorrência mercadológica, nos casos em que uma empresa concorrente que, como infratora, vem a fazer o uso indevido de uma marca idêntica ou semelhante à outra já registrada para produtos ou serviços idênticos ou afins, usualmente cessa a infratora esta reprodução ou imitação quando notificada pelo titular da marca legítima, principalmente pelo desinteresse no enfrentamento em um processo judicial envolvendo perdas e danos e lucros cessantes.
O mesmo acontece quando se discute o envolvimento de uma patente, depois de positivada a violação da invenção ou de um modelo de utilidade; ou, ainda, quando se considera a violação do “design” – este registrado junto ao INPI como desenho industrial – ou do conjunto imagem de determinado objeto, também conhecido por “trade-dress”, doravante protegido através da proibição à concorrência desleal.
Poder-se-ia, a princípio, alegar que situações tão adversas – isto é, de concorrência mercadológia e de concorrência profissional (no caso da atuação de agentes da propriedade industrial) não guardam correlação direta. Mas a verdade é que em todos estes casos a ilicitude nasce nas decisões do indivíduo – seja ele o profissional concorrente ou o empresário concorrente e, portanto, são ao menos correlatas em sua origem. Neste sentido, Gama Cerqueira já nos recordava:
“A livre concorrência encontra, assim, os seus limites, primeiro, nos direitos alheios, depois, nos deveres do indivíduo para com a sociedade em que vive, e, finalmente, nos deveres da caridade. Ora, se os indivíduos observassem, espontaneamente, a regra moral que lhes deve pautar a atividade econômica, é evidente que não se tornariam necessárias as leis reguladoras da concorrência comercial e industrial, ou da concorrência econômica. Não é isso, porém, o que se verifica, mas justamente o contrário, tendendo a livre concorrência para o abuso desse direito, o que exige a intervenção do Estado nos seus domínios, a fim de contê-la dentro de certas regras impostas pela lealdade, pela boa-fé e pelo interesse social. Os princípios em que se funda a teoria da repressão da concorrência desleal dominam todos os institutos da propriedade industrial, como o reverso moral da lei positiva, revelando-se, assim, sob mais este aspecto, a unidade desse ramo do direito.” (GAMA CERQUEIRA, João da, Tratado da Propriedade Industrial, vol. I, p. XVI, 3ª. Ed., Lumen Juris, 2010; grifos nossos)
Em igual sentido, um número diverso de tribunais brasileiros nos recorda que as formas condenáveis de concorrência, em qualquer esfera, nascem das violações aos princípios da moral e da ética:
“Do exposto, resta evidente que a pretensão do apelante de utilizar o nome de domínio Airtonsenna.com.br, na rede mundial de computadores internet, sem a indispensável autorização da autora-apelada, encontra óbice não só na lei, mas também, nas regras de ordem ética e moral que devem necessariamente pautar as relações humanas e comerciais”. (Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, 2ª Câmara Cível, Des. Sidney Mora, AC 0086382-5, DJ 29.03.2000; grifos nossos)
“Em que pese o brilho de tal orientação, penso que ela não merece prosperar, porque na fase pós-positivista atravessada pelo direito pátrio, a doutrina contemporânea admite uma reaproximação entre direito e moral, ou seja, o operador jurídico, na sua tarefa hermenêutica, não deve se afastar das pautas éticas e axiológicas. E tanto isso é verdade que, entre os pilares principiológicos do novo Código Civil, não estão apenas a socialidade e a operabilidade, mas, sobretudo, a eticidade, cuja eficácia normativa preconiza a boa-fé nas relações travadas no âmbito privado.” (Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, 4ª Câmara Cível, Des. Catharina Barcellos, AC 030070038010, DJ 28.07.2009; grifos nossos)
“A eticidade é característica de toda ordem jurídica, como bem assevera o saudoso Miguel Reale: “Poder-se-ia dizer que a bilateralidade atributiva se caracteriza pela sua estrutura axiologicamente binada, de tal modo que a correlação entre posse e debere, entre pretensão e prestação, graças a ela se exprime de maneira objetiva, ficando superado o plano da relação empírica entre dois sujeitos, visto se referir a algo essencial à vida do espírito: à possibilidade e à necessidade ética de obrigar-se o espírito também em virtude e em razão de algo transubjetivo”. (em Filosofia do Direito, p. 694) Por conseguinte, não há atuação do sujeito desvinculada da eticidade, de sorte que a análise que se faz de um requerimento de patente deve tomar em consideração também a eticidade do postulante.” (TRF2, EDAC 2000.02.01.018537-5, Segunda Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região, à unanimidade, Des. André Fontes, 26 de agosto de 2008; grifos nossos)
A ética, em si, como ramo da filosofia e, de forma mais ampla, pode ser entendida como o conjunto de princípios, valores e normas morais e de conduta em determinado grupo. Na Propriedade Intelectual, temos, simultaneamente, o reconhecimento à ética de mercado (esta relativa ao direito concorrencial, de forma ampla, em sua matéria), bem como a ética profissional (esta, relativa à concorrência entre os escritórios que defendem os interesses de detentores de direitos: lato sensu, os seus procuradores).
Assim, é mister estabelecermos, para o enriquecimento do debate, uma definição do que é que compreenderia a “ética profissional” a ser obedecida por procuradores e agentes da propriedade industrial, a sua importância, e finalmente as penalidades que poderiam desaguar do seu descumprimento por indivíduos ou mesmo empresas que não guardam a retidão das ações no exercício do profissionalismo que deve envolver o mediador entre empresas e pessoas físicas (clientes) e o órgão governamental garantidor dos direitos de PI (como INPI, PTMO, USPTO, etc.).
É de todo certo que no Brasil associações como a ABAPI (Associação Brasileira dos Agentes da Propriedade Industrial) têm absoluta importância e legitimidade em estabelecer a ética profissional daqueles que atuam em seu âmbito, e por isso mesmo mantém o seu Código de Ética Profissional dos Associados (vinculado aos seus Estatutos, com aprovação em Assembleia Geral Extraordinária de Agosto de 2013) e que dispõe, por exemplo, da proibição pelo profissional de oferecimento de serviço em processo específico em que haja procurador constituído (artigo 8), além de estabelecer que o associado deve relacionar-se com demais associados com boa-fé, transparência e lealdade (artigo 9). Além destas preliminares, dispõe a ABAPI em seu Código de Ética que o associado, ao assumir processo(s) que vinha sendo patrocinado por outro associado, deve dar ciência da mudança de patrocínio ao agente anterior (artigo 10). A negligência de todos esses deveres e outros, estabelecidos no Código, pode acarretar, iniciado o devido processo disciplinar, uma advertência, suspensão ou mesmo exclusão definitiva do sócio denunciado.
Esta é, talvez, a maior diferença entre as consequências da violação da ética de mercado e da ética profissional, ambas presentes na Propriedade Intelectual. Enquanto aquela primeira lida com sanções em âmbito judicial, tanto na esfera penal quanto civil, esta última está limitada a sanções administrativas – e mesmo assim somente dentro das associações profissionais.
Muito tem se falado, por isso mesmo, da temporária suspensão dos efeitos do Ato Normativo n. 142/98 do INPI através de decisão judicial ainda disputada, que estabelecia, então, o Código de Conduta Profissional do Agente da Propriedade Industrial que possuía alcance nacional, para todos aqueles que eram legitimados pelo INPI para exercer a profissão. Embora hoje este diploma não possa nos servir de referência legal, o Código de Ética Profissional dos Associados da ABAPI tem pleno efeito e alcança, sem exceção, todos aqueles que são membros da associação.
Pois bem!
Tais princípios éticos profissionais, ainda que efetivamente sejam observados pela maioria dos agentes da propriedade industrial vinculados ou não como associados da ABAPI e outras entidades, são também, em um número significativo de casos (principalmente naqueles em que determinados profissionais se desvinculam de escritórios conhecidos para formar novos escritórios independentes), absolutamente ignorados. Tais atos – que geralmente envolvem o despejo de informações a uma clientela dos quais tais profissionais se apropriaram (em algumas oportunidades, indevidamente) – ocorrem sem a mínima observância dos preceitos que envolvem a ética e a lealdade concorrencial, que, por ironia, são justamente princípios estudados pela Propriedade Intelectual.
Assim, neste momento em que vemos um número muito grande de golpes multiplicarem-se (alguns, inclusive, envolvendo o nome do próprio INPI) e de brasileiros em posições políticas que negam em responder pela gravidade de seus próprios atos, entendemos relevante sempre alertar a todos os colegas e a todos aqueles que convivem e vivem da Propriedade Intelectual, que os princípios éticos repousam não apenas nas suas matérias e disciplinas (ou mesmo no fundamento principiológico das leis e normas que as compõem), mas também no seu cotidiano, transparecendo nas ações de um profissional junto aos seus iguais e aos seus clientes.
A lealdade concorrencial não deve ser guardada apenas para os Tribunais.
por Márcio Ney Tavares